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MECÂNICA QUÂNTICA /

Conceitos fundamentais /

Algumas noções sobre o formalismo quântico

(c) do autor Silvio Seno Chibeni






Duas das noções mais importantes nas teorias físicas são as de estado e a de grandeza, quantidade ou magnitude física. De um modo geral, estados são caracterizações básicas dos objetos físicos tratados pela teoria. As grandezas físicas são as propriedades mensuráveis desses objetos. 

Vejamos, para comparação, como essas noções são definidas na mecânica clássica. Pensando no caso mais simples possível, ou seja o de uma partícula, ou “ponto material” de massa m, o estado mecânico clássico é representado pelo conjunto de seis números, usualmente simbolizados por (x, y, z, px, py, pz), ou, em notação vetorial, (r, p).

As grandezas físicas, por outro lado, são representadas por funções que têm esses números como argumentos, A = f (r, p). Exemplos simples seriam a posição, r, o momentum p (que são as grandezas que entram na composição do estado), a energia cinética, p2/2m, a energia potencial armazenada numa mola, kx2/2, etc.

Estados em geral evoluem com o tempo, em virtude de ações exercidas sobre o corpo. Na mecânica clássica, a equação fundamental que rege essa evolução é, como se sabe, a segunda lei de Newton, F = m a. Essa evolução temporal é completamente determinista, ou seja, dado um estado inicial, (r0, p0), e as forças que agem sobre o objeto, a equação permite em princípio o cálculo do estado num outro instante t qualquer, (rt, pt).

Passemos agora à situação na mecânica quântica (MQ). Esta apresentação é muito simplificada, mas os aspectos mais importantes para uma discussão dos fundamentos e implicações filosóficas da teoria não serão afetados por essa simplificação.

Estados quânticos são representados por funções das coordenadas espaciais (ou, alternativamente, do momentum) e do tempo: Ψ(r, t), ou Ψ(p, t). Tais funções são conhecidas como funções de estado, ou funções de onda. A última denominação se deve ao fato de que as primeiras funções investigadas eram de tipo “ondulatório”, como a função que representa uma partícula com velocidade constante, que em uma dimensão seria: Ψ(x) = N exp (2πi mv x / h), cujas partes reais e imaginárias são ondas sinusoidais. O conjunto das funções de estado dos objetos quânticos formam estruturas matemáticas chamadas espaços de Hilbert. De um modo mais geral, então, deve-se dizer que os estados quânticos são “vetores” de espaços de Hilbert. (Mas não se trata necessariamente de vetores do tipo mais simples, usado na física clássica.)

As grandezas físicas quânticas são representadas por operadores no espaço de Hilbert associado ao objeto. Em termos simplificados, um operador é algo que transforma um vetor do espaço em outro, e se simboliza:

Ψ’ = ΑΨ

Assim, o operador A corresponde, no formalismo, à grandeza física A. . (É comum que se use o mesmo símbolo para ambos o operador e a grandeza, mas isso pode levar a confusões.) Um exemplo de operador simples e importante é o operador momentum, que no caso unidimensional é P = - i (h/2π) ∂/∂x.

Atribuição de valores. O significado físico de uma grandeza física requer, naturalmente, que se possa atribuir valores a ela. É isso que permitirá colocar a noção em correspondência com a realidade empírica, a leitura de um aparelho de medida. No entanto, neste ponto surge a primeira e mais fundamental dificuldade de ordem interpretativa na MQ: Dados um estado Ψ uma grandeza A quaisquer, em geral o formalismo quântico não atribui um valor a A ! Parece, então, que a teoria está falhando em sua função essencial: a predição dos fenômenos (no caso, resultados de medida).

Dissemos “em geral” porque há exceções: Pode acontecer que Ψ e A  sejam tais que valha:

A Ψ = a Ψ , com a real.

Neste caso a teoria atribui o valor a a A , o que podemos representar assim:

[A ]Ψ = a

Esse estado especial é dito autoestado do operador A, e a seu autovalor. Todo operador tem um conjunto de autoestados e autovalores associados. Os autovalores são, portanto, os valores possíveis da grandeza associada ao operador, chamando-se, em seu conjunto, o espetro da grandeza. Algumas grandezas de certos objetos têm espetros contínuos, ou seja, os valores possíveis que a MQ lhes atribui são números de um intervalo de números reais. Outras grandezas têm espetros discretos, isto é, os valores possíveis são números enumeráveis (podem ser colocados em correspondência biunívoca com números naturais). A existência de grandezas com espetros discretos, ou quantizadas, representa uma das características peculiares da MQ. (Na física clássica em geral as únicas grandezas quantizadas são relativas a fenômenos ondulatórios: por exemplo, as frequências de uma corda esticada entre dois pontos fixos.)

Voltando ao problema mencionado acima, notemos que ele é agravado pelo fato de que mesmo quando o estado Ψ não é autoestado de A, medidas de A  sobre o objeto são inteiramente possíveis e dão valores bem definidos. Como interpretar essa situação? Há duas posições possíveis:

1. A descrição quântica do objeto é incompleta: não prevê valores de grandezas perfeitamente mensuráveis;

2. Os valores dessas grandezas “não existem”, ou não estão definidos antes que se efetue a medida; a medida então “criaria” ou tornaria definidos os valores (não sendo, pois, propriamente uma medida, no sentido usual do termo: mera revelação de uma propriedade preexistente do objeto investigado).

Entre os fundadores da MQ, Schrödinger, de Broglie e, sobretudo, Einstein, mantiveram a posição 1. Foi justamente para defender essa posição que Einstein, Podolsky e Rosen (EPR) propuseram seu famoso argumento em 1935. Bohr, Heisenberg, Dirac, Born, Jordan, Pauli sustentaram 2, que depois veio a se estabelecer como a posição “ortodoxa” (também dita “de Copenhague”). O debate, no entanto, sempre continuou vivo, tendo surgido posteriormente novos elementos para a discussão. Dentre eles, mencionamos a criação, em 1952, de uma teoria mais completa que a MQ, a teoria de variáveis ocultas, de David Bohm; uma série de resultados algébricos que impõem restrições severas a teorias mais completas que a MQ; e as desigualdades de Bell e seus testes experimentais, que mostram que teorias desse tipo são necessariamente não­locais.

Probabilidades quânticas. Voltemos, porém, ao formalismo quântico. Embora para cada estado quântico o formalismo sempre deixe de especificar os valores de certas grandezas, atribui, no entanto, probabilidades de que os valores sejam encontrados empiricamente, por meio de medidas. O primeiro e mais importante passo nessa direção foi dado por Max Born, já em 1926, que propôs a seguinte regra probabilista para o caso particular, porém fundamental, da medida de posição de uma “partícula”:

A probabilidade de se encontrar a partícula entre a posição x e x + dx é dada pelo módulo quadrado da função de onda: |Ψ(x)|2 dx

 

3. A “regra de Born” (que por simplicidade enunciamos no caso unidimensional) pode ser generalizada para uma grandeza física qualquer. Isso requer a introdução de mais alguns conceitos.

O produto escalar de duas funções de onda ψ e f é o número complexo definido por:

(ψ, f) = ∫ψ*(x) f(x) dx

onde mais uma vez nos restringimos ao caso unidimensional, e ψ*(x) é o complexo conjugado de ψ(x). Podemos calcular o valor médio de uma grandeza A qualquer, num estado ψ qualquer, utilizando a noção de produto escalar:

<A>ψ = (ψ, Aψ)

Dado um autovalor a de um operador A, no caso simples de só existir um autovetor f associado a a (“autovalor não-degenerado”) define-se o operador de projeção sobre f como o operador que transforma um vetor ψ qualquer do espaço de Hilbert num vetor que difere de f por, no máximo, a multiplicação por um número complexo l: 

Pa ψ = l f

Se houver mais de um autovetor associado a a, a projeção será feita no subespaço de Hilbert varrido por tais autovetores: o vetor ψ é levado a um elemento qualquer desse subespaço.

Finalmente, podemos agora exprimir a probabilidade de encontrar o valor a numa medida de A no estado  ψ é dada pelo valor médio de P a , a grandeza física representada pelo operador de projeção Pa:

probA ψ(a) = <P a>ψ = (ψ, Pa ψ)

Evolução temporal dos estados quânticos. Assim como na mecânica clássica existe uma equação que rege a evolução temporal dos estados clássicos, na mecânica quântica há uma equação fundamental, a equação de Schrödinger, que cumpre o mesmo papel:

H Ψ  = (ih/2π) ∂/∂t Ψ

onde H é o operador hamiltoniano, que representa a energia total do objeto, e ∂/∂t é a derivada parcial em relação ao tempo. Para um objeto sujeito exclusivamente a um potencial escalar V, esse operador é:

H = -(h2/2m) ∇2+ V = -(h2/2m) (∂2/∂x2+ ∂2/∂y2 + ∂2/∂z2) + V

Deve-se notar que, à semelhança do que ocorre na mecânica clássica, a evolução temporal regida pela equação de Schrödinger é inteiramente determinista. No entanto, há processos físicos aos quais essa equação não se aplica. Conforme já mencionado, quando se efetua a medida de uma grandeza A em um sistema num estado ψ que não é autoestado do operador associado A, a MQ não atribui um valor a A . O fato de que mesmo nessas circunstâncias uma medida de A sempre produz um resultado (a, digamos), associado ao fato de que o formalismo prescreve que a partir da medida (se esta não destruir o objeto) o estado passa a ser um autovetor de A  que tenha a como autovalor, implica uma transição de estado não regida pela equação de Schrödinger. (Esse ponto pode ser demonstrado de forma rigorosa.) Essa transição, sim, é que será indeterminista, se a MQ for considerada uma teoria completa, i.e., disser tudo o que puder ser dito sobre o objeto. Em outras palavras, a obtenção do valor a, e não de um outro autovalor qualquer de A é uma questão de puro acaso, segundo a MQ.

4. A primeira grande fonte de dificuldades teóricas e filosóficas da MQ é, lembremos, a da aparente incompletude da teoria. Deve estar claro agora que é precisamente porque a teoria deixa de especificar certos resultados de medida que se faz necessário introduzir esse segundo processo de evolução de estado. Na vertente ortodoxa, isso foi feito na forma de um “postulado”, sem qualquer explicação teórica, e motivado unicamente pela necessidade de dar-se conta do aparecimento de resultados de medida precisos quando das mensurações. Em 1935, Schrödinger argumentou a favor da tese da incompletude da MQ explicitando um problema grave que surge quando se investiga mais detalhadamente essa forma de a teoria tratar o processo de medida, problema que ficou conhecido como o problema do “gato de Schrödinger”.

Sugestões de leitura.

Um excelente livro-texto de MQ é Cohen-Tannoudji et. al. 1977. Outro texto relativamente recente e que oferece um tratamento formal rigoroso e elegante da MQ é Ballentine 1989. Squires 1986 apresenta noções essenciais sobre os estados quânticos e sua interpretação a um público iniciante (para o formalismo, ver, especialmente, a seção 2.2 e o apêndice 4).

Para uma discussão simples da questão da completude da MQ, ver Chibeni 1992. Um tratamento mais detalhado e aprofundado encontra-se em Chibeni 1997, cap. 3. Ambos os trabalhos contêm extensas listas de referências aos artigos e livros originais.

O problema da medição quântica está esboçado em nossas notas de aula Chibeni 2000. Para uma análise bem mais detalhada, ver Pessoa Jr. 1992.

Clássicos sobre a história da MQ são Jammer 1966 e Pais 1982. Um texto bastante acessível sobre o debate histórico entre Einstein e Bohr é Brown 1981. Sobre o mesmo assunto, ver também Ballentine 1972 e Paty 1995.

Uma importante crítica detalhada à interpretação ortodoxa da MQ é Ballentine 1970. Um texto recente, preciso e abrangente sobre os fundamentos da microfísica (incluindo um resumo didático do formalismo quântico) é D’Espagnat 1994.



Referências.

BALLENTINE, L. E. The statistical interpretation of quantum mechanics. Reviews of Modern Physics, 42 (4): 358-81, 1970. ––. Einstein’s interpretation of quantum mechanics. American Journal of Physics, 40: 1763-71, 1972. ––. Quantum mechanics. Englewood Cliffs, Prentice Hall, 1989.

BROWN, H.R. O debate Einstein-Bohr sobre a mecânica quântica. Cadernos de História e Filosofia da Ciência, n. 2, pp. 51-89, 1981.

CHIBENI, S.S. Implicações filosóficas da microfísica. Cadernos de História e Filosofia da Ciência, Série 3, 2(2): 141-164, 1992. ––. Aspectos da Descrição Física da Realidade. (Coleção CLE, vol. 21). Campinas, Centro de Lógica, Unicamp, 1997. ––. Uma breve introdução ao problema da medida na mecânica quântica. (Notas de aula, 2000.)

COHEN-TANNOUDJI, B. et. al. Mécanique Quantique. Paris, Hermann, 1977.

D’ESPAGNAT, B. Le Réel Voilé. Paris, Fayard, 1994. (Há trad. para o Inglês, The Veiled Reality.)

JAMMER, M. The Conceptual Development of Quantum Mechanics. New York, McGraw-Hill, 1966.

PAIS, A. Subtle is the Lord. Oxford, Oxford University Press, 1982. PATY, M. The nature of Einstein’s objections to the Copenhagen interpretation of quantum mechanics. Foundations of Physics, 25 (1); 183-204, 1995.

PESSOA Jr., O. “O problema da medição na mecânica quântica: Um exame atualizado.” Cadernos de História e Filosofia da Ciência, Série 3, 2 (2): 177-217, 1992. SQUIRES, E. The Mystery of the Quantum World. Bristol, Adam Hilger, 1986.

(c) do autor Silvio Seno Chibeni





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Notas do Prof. Afrânio Rodrigues Pereira (UFV)

  • Formalismo da Mecânica Quântica - Parte 1
  • Formalismo da Mecânica Quântica - Parte 2




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