A profissão de físico /

Difícil é fazer conta:
Por que é quase impossível achar um aluno universitário da área de exatas sem um reprovado no histórico ?

O estudante Jean Paul Schlegel, de 24 anos, mal havia começado o curso de Engenharia Elétrica na Universidade Federal de Santa Catarina quando experimentou o sabor nada agradável da repetência. No primeiro semestre, Jean foi reprovado em duas disciplinas: Cálculo e Geometria Analítica. Segundo ele, o deslize nada tem a ver com a área de estudo que escolheu: foram problemas pessoais que atrapalharam seu desempenho. O curso não chega a ser difícil. É preciso apenas tempo para estudar, sustenta. Hoje, no 9º semestre, Jean teve outras duas reprovações durante sua vida acadêmica – em Circuitos Elétricos e em Sistemas de Controle. Apesar dos percalços, ele se considera um bom aluno. Dos 40 estudantes que entraram na minha turma, apenas três nunca foram reprovados, conta. Ou seja: cerca de 37 alunos em uma única classe tiveram de repetir disciplinas em algum momento do curso. E é claro que nem todos esses tropeços foram causados por problemas pessoais.

História bem diferente é a que conta Gabriela Floriani, 20 anos – aluna do 4º semestre na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Gabriela nunca foi reprovada – e, em seu curso, ela não é exceção. Pouca gente rodou na minha turma. E quase todas as reprovações ocorreram por excesso de faltas, relata. Para Gabriela, no entanto, o baixo índice de repetência não significa que o curso demande pouco estudo. É impossível o aluno se sair bem no Direito sem muita dedicação, resume.

O histórico universitário de Jean e Gabriela ilustra uma realidade notória entre os estudantes do ensino superior: em geral, quem opta pelas ciências exatas é reprovado mais vezes que seus colegas das humanas. Um levantamento feito pela Universidade Federal do Paraná comprova essa discrepância. Após acompanhar o desempenho de seus estudantes entre 1992 e 2001, a instituição descobriu que, dentre as 10 mil disciplinas oferecidas, 263 reprovavam sempre mais de 70% da turma. Cálculo e Genética lideram a lista das cadeiras que mais reprovaram alunos nesse período, revela Rosana Sá Brito, diretora do Núcleo de Acompanhamento Acadêmico da UFPR. Algumas disciplinas humanas também entraram no páreo – por exemplo, da área de filosofia e das ciências sociais. Mas a maior parte integra o currículo das exatas.

Há muitas explicações possíveis para esse desequilíbrio histórico entre as duas áreas de conhecimento. Segundo Marlene Grilo, coordenadora de Desempenho Acadêmico da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, faculdades como Matemática e Engenharia exigem mais raciocínio lógico de seus alunos - e, portanto, geram mais reprovação. Mas essa opinião está longe de ser unânime. Raciocínio lógico é necessário em todas as disciplinas de curso superior, sem exceção, argumenta Rosana, da UFPR. Para ela, o que aumenta o índice de repetência nas matérias exatas pode ser a maneira como elas são lecionadas. O método didático nesses cursos sempre foi mais rigoroso. Alunos que penam para se formar tendem a se tornar professores exigentes. Costuma-se ensinar do mesmo jeito que se aprende.

O economista e professor universitário Cláudio de Moura e Castro aponta outro fenômeno enraizado na cultura acadêmica: o alto índice de repetência é visto como sinal de qualidade na área das exatas. Muitos acreditam que, se a disciplina não for difícil, então o professor é ruim, ressalta. Já em faculdades como Historia e Jornalismo, diz ele, não existe essa cultura da reprovação. Nas humanas, todo mundo é bonzinho e afetivo, brinca.

Raiz do problema - Outro fator que não deve ser ignorado é a discrepância entre o que se ensina na escola e o que se exige na universidade. O ensino básico e médio no Brasil é muito ruim. Se a demanda na faculdade for alta logo no primeiro semestre, o aluno não tem como se adaptar, opina Rubens Sprada Mazza, coordenador do curso de Comunicação Social da UFPR. Os professores de cursos como Matemática e Física defrontam seus alunos com desafios mais altos do que eles estão preparados a enfrentar - e, quando a reprovação se torna contumaz, logo vem o desânimo e a evasão. Nessas faculdades, o número de estudantes em cada turma chega a cair para menos da metade entre o início do curso e os semestres finais. Poucos alunos persistem - tão poucos que custaria menos ao Estado enviá-los a Harvard do que manter toda a estrutura do curso universitário, ironiza Castro. E contrapõe: Nas humanas, ocorre o contrário: o grau de exigência está abaixo da capacidade dos estudantes.

Nem sempre, como mostra a Faculdade de Filosofia da UFRGS - cujo corpo docente faz questão de exigir muito de seus alunos já nos primeiros semestres. O rigor funciona como uma espécie de triagem: no final das contas, só permanece no curso quem está determinado a seguir a carreira. Se os indecisos são aprovados com facilidade, a opção por mudar de rumo acaba sendo adiada, comenta Alfredo Storck, coordenador do curso. Uma pesquisa sobre o desenvolvimento vocacional dos universitários, que está sendo desenvolvida por Marucia Bardagi, doutoranda em Psicologia na mesma entidade, corrobora a opinião do professor. Quando um universitário não é bem-sucedido, questiona-se se não teria sucesso em outra área, revela Marucia.

O exemplo da Filosofia da UFRGS coloca outro ponto em evidência: os diferentes níveis de cobrança observados em instituições públicas e privadas. A repetência tende a ser menor em qualquer instituição paga, afirma Gustavo Ioshpe, economista e consultor do MEC. Se o curso for muito difícil, um grande número de pessoas pode largá-lo pela metade. E isso significa prejuízo financeiro - ou aumento de mensalidade para os alunos que ficam. Outro fator que diminui o número de reprovações nas faculdades particulares é o baixo índice de desistência: afinal de contas, poucos estudantes abandonam uma disciplina depois de terem pago a mensalidade. Universitários como Daniel Vidaletti, que cursa Administração com Ênfase em Análise de Sistemas na PUC-RS, têm um motivo extra para evitar a todo custo a reprovação. Vidaletti tem crédito educativo - e se for reprovado em mais da metade das disciplinas, perde o beneficio. Além disso, se eu trancar ou abandonar uma disciplina, conta como reprovação, explica o aluno. A necessidade de prestar contas é um estímulo à responsabilidade.

Alívio para a nota vermelha

Para evitar a reprovação em massa em alguns cursos de ciências exatas, a UFPR resolveu mudar o próprio mecanismo de ingresso nessas faculdades. No final do último ano, começou o primeiro vestibular estendido - adotado nos cursos de Matemática, Matemática Industrial e Estatística. Depois de fazer a prova tradicional sobre os conteúdos aprendidos durante o ensino médio, os candidatos terão de cursar durante um semestre as disciplinas básicas do curso superior - que são, por sinal, as que mais reprovam. Os estudantes que apresentarem as melhores notas nessas cadeiras serão selecionados para continuar na universidade.

O Departamento de Matemática da UFPR também criou ferramentas específicas para diminuir a repetência na cadeira de Cálculo - que é o verdadeiro bicho-papão dos estudantes de exatas. Agora, uma comissão determina quais conteúdos devem ser ministrados na disciplina e exige que todos os professores sigam as diretrizes. Cada tópico da matéria deve ser lecionado de acordo com um calendário detalhado. Além disso, a comissão elabora 40% dos problemas aplicados nas provas. Criamos questões razoáveis, que exigem um conhecimento básico de cálculo. O aluno que estuda tem condições de resolvê-las, garante a professora Liliana Cumin, que integra a comissão. Além de proteger os alunos contra o excesso de cobrança por parte de alguns docentes, a iniciativa impede que o nível de exigência fique muito baixo. Alguns professores aprovavam todo mundo, revela Liliana.

Revista Amanhã, janeiro/fevereiro de 2006
Simone Fernandes