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MECÂNICA QUÂNTICA

CONCEITOS FUNDAMENTAIS /

Uma Breve Introdução Ao Problema Da Medida Na Mecânica Quântica


Silvio Seno Chibeni
Departamento de Filosofia - IFCH - UNICAM https://fisica.net/mecanica-quantica

Faremos agora uma exposição sucinta e bastante simplificada do segundo dos dois grandes problemas de interpretação da mecânica quântica: o problema da medida.

Vimos, no artigo “Implicações filosóficas da microfísica”, que de acordo com a mecânica quântica as coisas quânticas sempre têm os valores de algumas de suas propriedades indefinidos. O problema da medida resulta quando se investiga o que ocorre quando se efetua uma medida de uma propriedade cujo valor é indefinido. Tomaremos como exemplo a medida da propriedade a que chamamos S  naquele artigo, no estado inicial do experimento de EPR. As dificuldades que encontraremos são, porém, de natureza geral.


Quando medimos S, naturalmente sempre encontramos um valor preciso, +1 ou -1. Como a teoria não permite que esse valor seja interpretado como uma propriedade intrínseca da coisa quântica, nela presente antes da efetivação da medida, temos que atribuir o seu surgimento à interação entre a coisa e o aparelho de medida. Apontamos que o resultado assim “criado” é completamente aleatório; a teoria simplesmente não o prevê. Isto representa um rompimento com o determinismo das teorias clássicas, o que já é algo notável. No entanto, ainda não chegamos ao maior problema.

Este surge quando aplicamos a lei da evolução temporal dos estados quânticos ao estado da coisa quântica antes da medida. Tal lei se expressa através de uma equação diferencial parcial, a equação de Schrödinger, que é a equação fundamental da teoria quântica. Analogamente ao que ocorre na mecânica newtoniana, a especificação do estado quântico em um dado instante, juntamente com as forças que atuam sobre a coisa quântica, possibilita, através dessa equação, a dedução do estado quântico em um instante posterior qualquer. Nesse sentido, dizemos que a evolução de estado regida pela equação de Schrödinger é determinista.

Inserindo porém o estado pré-medida da coisa quântica nessa equação, obtemos o resultado surpreendente e aparentemente absurdo de que a medida simplesmente nunca ocorre! Isto acontece porque, segundo a descrição quântica da interação entre a coisa (microscópica) e o aparelho de medida (macroscópico) a indefinição das propriedades da coisa transmite-se, ou “contamina”, o estado do aparelho: o ponteiro deste, que deveria marcar ou +1 ou -1, assume uma posição indefinida! É importante não confundir isso com posição oscilante, ou intermediária; trata-se de uma completa indefinição; é impossível visualizarmos ou concebermos um ponteiro neste estado.



Embora decorra da aplicação estrita das leis da mecânica quântica, esta é uma consequência inaceitável. Poderíamos até tolerar que a misteriosa e invisível coisa quântica tivesse algumas propriedades indefinidas ou “borradas” (embora isto leve ao paradoxo de EPR). Mas que objetos macroscópicos usuais também apresentem esse “borramento” de propriedades não podemos aceitar, pois contraria as observações mais patentes.

 

Esse problema foi descoberto pelo próprio Schrödinger, em 1935. Ele destacou sua gravidade através de um exemplo dramático. Daremos a seguir uma versão adaptada do exemplo de Schrödinger.

Imaginemos que ao nosso aparelho de medida da propriedade S seja acoplado um “mecanismo infernal” (expressão de Schrödinger) tal que, se o ponteiro marcar +1, nada ocorre; mas se marcar -1, aciona-se um relê, que liga um motor, que aciona um martelo, que quebra uma garrafa cheia de um gás letal no interior de uma caixa fechada na qual foi colocado um gato vivo. Assim, o resultado +1 significa que o gato continuará vivo; e o resultado -1 acarreta a morte do gato.

Ora, se o aparelho medir a propriedade S de uma coisa quântica do sistema de EPR, por exemplo, já vimos que a teoria rigorosamente prevê que o próprio ponteiro do aparelho ficará em uma posição indefinida. E isso significa que o pobre gato também ficará em uma posição indefinida de mistura de vida e de morte! (Não se deve confundir esse estado com um trivial estado de doença grave.) Parece óbvio, porém, que sempre que inspecionarmos a caixa encontraremos o gato ou vivo ou morto, nunca no bizarro e inimaginável estado previsto pela teoria. E mais: se continuarmos aplicando a equação de Schrödinger ao sistema físico ampliado ¾ coisa quântica, aparelho, mecanismo infernal, gato e nós próprios, a teoria prevê que se abrirmos a caixa para inspecionar o gato, nós também entraremos em um estado indefinido, em uma superposição quântica de alguém que tem a consciência de haver observado um gato vivo e de alguém que tem a consciência de haver observado um gato morto. Aparentemente, alguma coisa deve estar errada...



Como no caso do argumento de EPR, estabeleceu-se um acirrado debate em torno do problema da medida na mecânica quântica ¾ também conhecido como o problema do gato de Schrödinger. A discussão perdura até hoje, com grande intensidade. A profusão de “soluções” que foram propostas, e sua estranheza, indicam talvez que nenhuma é satisfatória. Descreveremos agora, em linhas gerais e simplificadas, as principais delas.

1. COPENHAGUE. A “solução” mais popular, adotada desde o início pela maioria dos físicos, consiste simplesmente em ignorar o problema. Assume-se, nesta posição ortodoxa, que durante o processo de medida a equação de Schrödinger não se aplica, e que a evolução do estado se dá aí aleatoriamente; no jargão dos físicos, diz-se que a função de onda sofre uma “redução” ou “colapso”. De inspiração anti-realista, essa posição aceita o colapso como um fato, mas proíbe a sua investigação; recomenda que os físicos não se preocupem em entender quando, como e por que ocorre, e se limitem em aplicar a mecânica quântica como mero instrumento de predição dos fenômenos.

2. VARIÁVEIS OCULTAS. A segunda solução é alegar a incompletude da mecânica quântica e propor a introdução de uma teoria de variáveis ocultas. Aliás, foi primordialmente para defender, ao lado de Einstein, a tese da incompletude, que Schrödinger propôs o seu argumento do gato. Evidentemente, Einstein acolheu entusiasticamente o argumento. (Na verdade, estudos historiográficos recentes revelaram que Einstein desenvolveu independentemente um argumento formalmente idêntico ao de Schrödinger ¾ a única diferença é que o gato é nele piedosamente substituído por uma bomba, que ficaria na superposição explodida-e-não-explodida.)  Completando a descrição quântica, uma TVO elimina a indefinição, e com ela o problema da medida. Recorre-se ainda a funções de onda, mas estas não são entendidas como representando a realidade inteira, servindo apenas para guiar as partículas; o colapso não ocorre nunca. (Schrödinger abominava a idéia do colapso da função de onda; certa vez afirmou: “Se tivermos que conviver com esses malditos saltos quânticos, então lamento muito ter um dia me metido nesse negócio [a mecânica quântica]”.) No entanto, embora a presente solução seja perfeitamente possível, vimos que exige um preço muito alto: a não-localidade do tipo controlável.

3. AÇÃO DA MENTE. A terceira solução não deve ser enunciada sem um preâmbulo. Foi insinuada pelo grande von Neumann e apoiada e desenvolvida explicitamente pelo Prêmio Nobel Eugene Wigner (como von Neumann, húngaro de nascimento), além de outras personalidades ilustres. Eis a solução: é a mente, ou consciência, do observador que produz o colapso da função de onda. Antes que um ser consciente observe o aparelho de medida (ou o gato), este realmente está na condição indefinida prevista pela equação de Schrödinger. Quando a observação consciente ocorre, a posição do ponteiro se define (e o gato vive ou morre de vez). Deve-se notar que essa posição é perfeitamente compatível com a mecânica quântica e com todos os fatos observados. O problema está em que tenta resolver um mistério apelando a outro: ignoramos quase que completamente o que é uma mente, ou a consciência, e suas interações com a matéria.

4. PROPRIEDADES MACROSCÓPICAS.  A quarta solução é procurar atribuir o colapso a algum fator referente ao caráter macroscópico do aparelho de medida. Embora a idéia geral dessa proposta seja atraente, por restabelecer a objetividade da descrição quântica do mundo, as tentativas tradicionais de implementá-la têm sistematicamente fracassado. Recentemente, porém, quatro físicos teóricos italianos elaboraram uma teoria quantitativa ao longo dessa linha, que vem despertando o interesse dos investigadores dos fundamentos da mecânica quântica. Simplificadamente, essa teoria de Ghirardi, Rimini, Weber e Benatti, estabelece que a função de onda de uma coisa quântica “colapsa” espontaneamente, com uma probabilidade muito pequena, e o instante do colapso é aleatório. Quando, porém, uma dessas coisas é absorvida por um aparelho de medida (ou um objeto macroscópico qualquer), passa a fazer parte de um sistema composto de um número fantasticamente grande de coisas microscópicas (da ordem de 1027, digamos). Esse sistema entrará em um estado de indefinição de propriedades, como prevê a equação de Schrödinger. Mas é extremamente provável que em uma fração de segundo (10-9 s, digamos) a função de onda de algum de seus componentes microscópicos “colapse” espontaneamente. Como consequência, o sistema todo sai do estado de indefinição, passando para um estado normal. (Note-se que isso significa que, segundo essa proposta, o gato de Schrödinger fica de fato no estado superposto, mas apenas por uma fração de segundo...) Embora atraente, não só por restaurar a objetividade, mas também por seu nível de elaboração quantitativa, essa saída para o problema da medida pode vir a ser inviabilizada por certos experimentos extremamente delicados (envolvendo os hipotéticos SQUIDs ¾ superconducting quantum interference devices), que alguns físicos imaginam se tornarão factíveis em um futuro talvez não muito distante. Um dos resultados possíveis de tais experimentos é a observação daquilo que se denomina “superposição de estados quânticos macroscópicos”, e que, em termos populares, equivaleria um “gato” de Schrödinger supergelado e supercondutor na condição quântica de meio-morto-meio-vivo.

5. MUITOS MUNDOS. Finalmente, temos a quinta solução. Como a segunda, apesar de sua desconcertante estranheza, foi defendida por físicos sérios, e recentemente experimenta um surto de interesse. Originou-se de uma proposta de um estudante de doutorado do professor John Wheeler, Hugh Everett III. Wheeler naturalmente apoiou a idéia, tornando-se um de seus importantes defensores, até que bem recentemente renegou-a, por trazer “uma bagagem metafísica excessiva”. Na versão em que é mais conhecida hoje em dia, essa interpretação sustenta que numa medida todos os valores possíveis da propriedade que está sendo medida se obtêm, ou “atualizam”, ao mesmo tempo! Mas isto tem que ser conciliado com nossas mais patentes observações. A resposta é que os resultados ocorrem todos simultaneamente, porém em universos diferentes. (Daí advém a denominação pela qual essa proposta ficou conhecida: the many-worlds interpretation of quantum mechanics.) Quando medimos a propriedade S, por exemplo, o universo inteiro se duplica, com os físicos e tudo. Tais universos são idênticos, exceto quanto ao resultado da medida efetuada; cada um continua existindo para sempre, sem contudo haver qualquer interação entre um e outro. Se essa idéia parece fantástica, deve-se notar ainda que a duplicação do universo é o caso mais “ameno”, que só ocorre em medidas de propriedades com dois valores, como S. Se uma propriedade puder assumir dez valores, sua medida produzirá dez universos; se puder assumir infinitos valores (como é o caso de várias grandezas físicas), a medida cria infinitos universos. E mais: essa multiplicação de mundos ocorreria não somente quando físicos vão ao laboratório medir coisas quânticas; ela se verificaria em praticamente todos os sistemas físicos durante quase todo o tempo. Enquanto você leu esta página, por exemplo, somente os eventos que ocorreram em seu corpo criaram infinitos universos infinitas vezes, de modo que você próprio foi infinitamente multiplicado uma infinidade de vezes.

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Uma discussão mais extensa e precisa das opções realistas em microfísica pode ser encontrada em CHIBENI, S. S. Aspectos da Descrição Física da Realidade. (Coleção CLE, vol. 21). Campinas, Centro de Lógica, Unicamp, 1997. (xvi + 208 pp.).

Para uma análise recente e detalhada do problema da medida, ver PESSOA Jr., O. “O problema da medição na mecânica quântica: Um exame atualizado.” Cadernos de História e Filosofia da Ciência, Série 3, 2 (2): 177-217, 1992.

Um texto acessível que introduz o leitor a diversos outros problemas conceituais da física quântica é, do mesmo autor, “Interferometria, interpretação e intuição: Uma introdução conceitual à física quântica”. Revista Brasileira de Ensino de Física, 19 (1): 27-48, 1997.

Os três trabalhos trazem numerosas referências à literatura especializada.